RELIGIÃO E MITOLOGIA NA TERRA DOS FARAÓS



Religião e mitologia na terra dos faraós

Por Christine el Mahdy

A antiga civilização egípcia era essencialmente conservadora. Embora tivesse durado mais de 3000 anos, uma vez encontrada a solução para determinado problema, raramente foi alterada, o que faz com que muitos aspectos, como a arte e a tecnologia, possam ser estudados como uma unidade. A única exceção foi o sistema de crenças religiosas. Este foi evoluindo lentamente e sofrendo alterações, por vezes sutis, outras vezes radicais. Consequentemente, esta é a mais complexa área da egiptologia e a mais sujeita a mal-entendidos e a debates entre estudiosos e entusiastas na matéria. A razão para esses possíveis mal-entendidos é freqüentemente a falta de objetividade na egiptologia. O seu campo científico conta uns escassos 200 anos, sendo no primeiro século dominado pelo desejo de provar a “autenticidade” da bíblia e pela cobiça do ouro e dos preciosos tesouros egípcios. As únicas fontes que os primeiros acadêmicos tinham eram os clássicos, incluindo Heródoto, Alexandre o Grande, Ptolomeu e a bíblia - e todos concordavam que os egípcios eram simplesmente «capatazes cruéis». Esta opinião parece corroborar o pensamento popular da época, já que os estudiosos modernos revelaram uma história completamente diferente.
A arqueologia demonstrou que os primeiros colonos do vale do Nilo eram oriundos de muitos locais e temos muito poucas evidências de que houvesse um povo autóctone. A maior parte dos imigrantes provinha da África, da região camítica do Norte da África e das terras semíticas a nordeste. Constituíam comunidades isoladas, desenvolvendo as suas próprias línguas, costumes e crenças. Estes grupos foram unificados em uma nação após uma longa série de conquistas que começaram por volta de 3400 a.e.c., e terminaram 700 anos mais tarde.
Só em aproximadamente 2700 a.e.c., é que emergiu um reino a que podemos chamar Antigo Egito, com uma única língua e governado por um só rei. Nos 1000 anos que se seguiram, o universo deste povo era dominado por um rei considerado como semi-deus, temido por todos. Os mitos foram sendo transmitidos oralmente pois só com o fim desta forma de monarquia, por volta de 1780 a.e.c., é que foi sentida a necessidade de registrar os mitos. Estes criaram e suportaram o mundo ocupado pelos Egípcios. Talvez apenas cerca de 0,1% da população sabia ler e escrever; os outros trabalhavam nas terras e dependiam dos narradores para terem uma forma de entretenimento. Para os rapazes que freqüentavam a escola, a escrita dos mito tradicionais fazia parte da sua educação e muitos deles só chegaram até nós graças às cópias dos rapazes das escolas.
Os primeiros registros arqueológicos mostram que antes e durante a Unificação, as crenças eram dominadas pelo culto do gado, que era corpulento e de grande chifres (semelhante ao gado bovino Ankole dos nossos dias). Os animais eram venerados e o rei identificava-se sempre com eles. Podemos também constatar que existia uma crença profunda na vida para além da morte, com os corpos sepultados em uma posição inclinada, com a cabeça apontando para sul e de frente para ocidente, na direção do pôr do Sol, e acompanhados por comida, bebida e pertences pessoais.
Os mitos egípcios procuraram explicar ao povo em geral como é que o mundo começou e o que pode acontecer quando se morre. Estes eram povoados de heróis desaparecidos há muito, cujos exemplos tanto podiam ser inspiradores como aterradores. Como um escritor recentemente afirmou, a religião nacional afetou pouco os que viviam fora do círculo fechado dos reis. Para muitos, a religião era uma mistura de mágica e superstição. Os contos explicavam-lhes como é que o mundo tinha sido criado (os mitos da Criação); como é que era possível vencer a morte (o assassínio e a ressurreição de Osíris); o poder e a sabedoria das mulheres em relação aos vilões (ísis); e como é que o bem sempre triunfa sobre o mal (as batalhas entre Horus e Seth). Havia também contos de puro terror (a destruição do homem).
EQUILIBRIO E CAOS
Os Egípcios entendiam o seu cosmos como sendo duas terras idênticas. A terra tinha sido criada como um monte que emergia das águas do Caos original. Para lá do horizonte a oeste encontra-se o Outro Mundo, uma terra paralela ocupada por espíritos ou mortos ressuscitados. Todas as noites, o Sol abandona o nosso mundo para ir brilhar no Outro Mundo. Quando ele se põe, os mortos recentes têm de enfrentar os terrores da entrada nesse reino e ser julgados antes de poderem entrar na terra, a qual é uma réplica perfeita do Egito, mas sem os seus problemas.
Estes dois mundos eram o duplicado um do outro. Era absolutamente vital manter estes dois mundos em equilíbrio, ou Maat; se esse equilíbrio se rompesse, mesmo que por pouco, o Caos original, ou Isfet, poderia regressar instantaneamente.
O rei era a única ponte entre os mundos. Todos os dias, secretamente, no coração do templo, ele reconstituía a criação. Os egípcios ocupavam um mundo precário, tremelicante, à beira da desordem.
A palavra do rei tinha de ser seguida com toda a exatidão para evitar o caos e a devastação. Os mitos, contados aos populares como contos ou canções davam, sem dúvida, conforto ao povo em geral, assegurando-lhes que os que entendiam das coisas tinham o controle e que o mundo era seguro. As pessoas necessitavam deste conforto, visto que, segundo as inscrições, os demônios e os espíritos malignos estavam à  espera em cada canto. A magia, em forma de amuletos e de palavras especiais de proteção, era uma realidade para todos e usavam-na para manter afastado o medo da escuridão.
O JULGAMENTO DO MORTO
Segundo a crença e a lei egípcias, nenhum homem podia julgar outro nem em vida nem depois de morto. Sob este sistema único, eles acreditavam que após a morte do corpo, o coração intacto era ressuscitado pela cerimônia da Abertura da Boca e a partir daí passava para ocidente, para os aposentos de Osíris. O falecido tinha então de recitar os feitos da sua vida. Enquanto a sua língua podia mentir, o seu coração conheceria a verdade. Quando acabasse de falar, tinha de apresentar o coração para ser pesado (um amuleto, um escaravelho era colocado no túmulo sobre o coração para o ajudar a cumprir este processo). Era pesado contra Maat, o Equilíbrio Cósmico. Se fosse considerado muito pesado - cheio de culpas, porque a língua tinha mentido – então o falecido sofria uma segunda morte pelo Gobbler. O infeliz tornava-se então em um espírito malévolo que podia trazer doença e morte aos humanos e era afastado pelos curandeiros que utilizam palavras com poderes e amuletos.
AMULETOS
Estes talismãs protegiam os Egípcios em todos os aspectos da vida e eram tidos como muito poderosos. As imagens do Olho de Hórus protegiam os bebes; as imagens de Taueret, um hipopótamo fêmea grávida ajudavam a que as mulheres ficassem grávidas; enquanto um frágil sapo era uma ajuda contra o insucesso. O deus anão Bés estava ligado a muitas espécies de mau comportamento, mas ele e a mulher, Beset, davam proteção às mulheres em trabalho de parto. Pedaços direitos e curvos de marfim, com inscrições de palavras mágicas e de figuras lendárias de grifos e serpentes eram colocados sobre o ventre da mulher em trabalho de parto para o abreviar e afastar qualquer espirito mau.
Após a morte, os amuletos eram utilizados em grande número para proteger o morto. Os reis e as pessoas ricas tinham-nos entre as ligaduras, desde um fino descanso da cabeça para proteger o pescoço, até a um escaravelho mágico colocado diretamente sobre o coração, com palavras inscritas para permitir ao corpo
ressuscitado apresentar o coração para julgamento. Foram feitas listas prescrevendo a forma exata e o tipo de material para que o amuleto tivesse efeito.
CULTOS E ANIMAIS
Os Egípcios, ao contrário do que algumas pessoas pensam, não adoravam animais. Em toda as cidades, adotaram um animal nos tempos pré-dinásticos que representava os aspectos das forças locais e que poderia, por exemplo, ser um falcão selvagem, conhecido pela sua natureza predatória e pelo seu ataque súbito e inesperado. Mas também podia ser um leão ou um crocodilo, animais respeitados não só pela sua grande força mas também pelo seu imenso poder. Em muitos casos, as cidades adotavam o inimigo natural do vizinho: se uma cidade adotava uma cobra, a cidade vizinha podia adotar um icnêumon, um mangusto egípcio, que aterrorizava e matava as cobras. Nos últimos tempos, o deus local e o animal que o representava passaram a estar intrinsecamente ligados. Os egípcios vulgares não podiam entrar no templo ou participar na religião formal. Contudo, cada templo destacava os animais locais que podiam ser trocados por mercadorias.
Após a compra, o comprador tinha de matar e mumificar o animal para que o seu espírito pudesse voar para o deus local para colocar questões e pedir auxílio. Milhões destes animais foram mortos e guardados em catacumbas onde permaneceram até hoje.
A CRIAÇÃO DOS MITOS
Existem várias versões para explicar como começou o mundo egípcio e estes mitos, nos nossos dias, são popularmente considerados como tendo existido em concorrência. Isto sugere que os antigos Egípcios podiam escolher aquilo em que acreditar ou que as crenças variavam com as regiões - uma verdadeira base politeísta para a religião.
De fato, a arqueologia mostra com clareza que estes mitos não existiam lado a lado, mas que, pelo contrário, se desenvolviam a partir uns dos outros, cada um englobando o mito anterior e completando-o em proveito do deus seguinte. Isto assumia a forma de uma verdadeira reconstrução da história em que os deuses iam literalmente aumentando capítulos em seu louvor. Como surgiram estes mitos? Eles centravam-se, como quase todas as coisas no Egito, no próprio rei. Este, uma vez coroado, servia o templo local da cidade onde tinha nascido e onde, diariamente, fazia oferendas a algum espírito antigo, ou ka, de um herói local há muito falecido. Se conseguisse persuadir esse ka a voltar à terra, mesmo que por um curto espaço de tempo, podia negociar o Maat. Enquanto um chefe local podia ajudar a que tal sucedesse no seu templo com a simples oferta de comida e bebida, um rei poderia oferecer ouro e presentes de sonho. Estes eram entregues ao pessoal do templo para serem guardados com os tesouros ou usados para embelezar o templo. Durante todo o período em que a família real se mantivesse no poder, o seu templo seria o mais rico do império. Mas quando uma nova família subia ao trono, então as riquezas do templo anterior seriam lentamente retiradas e um novo templo e um novo deus tomariam o seu lugar. As cosmologias, ou mitos criados, refletem com exatidão a ascensão e a queda das casas reinantes.
TEMPLOS E SERVOS
Os primeiros planos foram descobertos como desenhos decorativos no solo de Nekhen (moderno El Kab) e textos que foram copiados com todo o rigor para os planos dos templos que se seguiram. O templo era essencialmente uma grande casa construída em pedra para que durasse uma eternidade. Tinham sempre um pátio exterior a que tinha acesso apenas o pessoal superior; um átrio interior com colunas aberto apenas ao Servidor principal; e um santuário interior, onde se encontrava um relicário com a imagem de culto do deus ou deusa.
Os templos exigiam um trabalho intenso, necessitando do contributo de milhares de homens durante muitos anos. A maior parte destes trabalhadores dos campos ou das oficinas, eram em grande parte especialistas, nomeadamente os escribas. Os servos do deus eram o pessoal principal do templo e apenas os mais importantes podiam entrar no santuário. Em teoria, deveria ser o rei, mas eram outros por ele nomeados visto que não podia estar em todo o lado.
Por volta de 1200 a.e.c., este posto tornou-se hereditário em muitos lugares e, assim, um número reduzido de famílias tornou-se uma ameaça política ao rei.

Fonte:http://www.templodeapolo.net/texto_ver.asp?ID=2376


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