Casamento e virgindade no Antigo Egito
O ocidente se criou sob a sombra das famílias patriarcais, onde a “honra imaculada” da mulher era muito presada. Esta foi uma regra comum entre os membros da elite, que além de apoiar o domínio dos pais, irmãos e futuramente os maridos, procurava garantir que o patrimônio não seria dado para uma criança gerada de outro homem. E foi inspirado neste pensamento que os primeiros egiptólogos começaram a interpretar o casamento no Egito Antigo, modelo esse que é seguido ainda hoje, sem críticas mais apuradas. Por exemplo, a interpretação do papel de cada conjugue no casamento parece ter sido “infectado” pelo o ponto de vista da nossa contemporaneidade.
Usualmente é descrito que homens eram os mantedores da casa, enquanto a mulher era a responsável pela a organização do lar e o cuidado dos filhos. Temos até textos clássicos que são usados para afirmar isto, como o “Ensino de Ptahhotep” (ZABA, 1956 apud TOIVARI-VIITALA, 2013) em que um rapaz é aconselhado a fundar uma família quando ainda é jovem para poder ter crianças. Ele deve amar sua esposa, respeitá-la e mantê-la sob controle, mas este texto é proveniente da elite e não parece ter sido adotado como uma regra geral, mas somente um conselho entre partidários. O próprio Strouhal (2007), que será amplamente citado neste texto, defende uma visão arcaica do que teria sido o casamento no Egito Antigo, contudo, observando os indícios escritos e arqueológicos de uma forma mais questionadora observamos que a realidade poderia ter sido um pouco mais diferente. De fato o cuidado com a criança parecia ser uma prioridade da mãe, contudo, a gerência do lar poderia ser do homem ou da mulher.
No Período Faraônico, a palavra utilizada para designar esposa foi Hmt e marido hay (TOIVARI-VIITALA, 2013). Estas menções foram encontradas em vários objetos que tinham como uma de suas funções apresentar ao receptor a ligação matrimonial entre um homem e uma mulher e são vistos deste os primórdios das dinastias. As referências textuais ao casamento mais antigas são provenientes do Antigo Reino em edifícios, túmulos da realeza e artefatos móveis, usualmente derivados da elite. Tais referências consistem na descrição de algum título que indica o estado civil dos citados, ou seja, a condição deles de casados (TOIVARI-VIITALA, 2013).
Embora anteriormente à 16ª Dinastia (Segundo Período Intermediário) as mulheres gozassem de certa liberdade — o que para gregos e romanos era considerado algo escandaloso (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007) —, quem definia se o homem que elas tinham escolhido era o ideal era o pai e na ausência deste um tio, contudo, após este período, elas tinham voz em suas decisões, embora casamentos arranjados tenham existido até o final do Faraônico (STROUHAL, 2007).
Algo como “noivado”, ou um acordo prévio que tratasse o casamento como uma promessa entre um casal é desconhecido, mas o par estava livre para namorar e mesmo ter relações sexuais (STROUHAL, 2007). O enlaço sexual, tanto antes, como posterior ao casamento, era aconselhado para que ocorresse somente após a puberdade de ambos os jovens e no caso de uma gravidez indesejada, embora o aborto não fosse bem visto (já que a ideia era perpetuar a linhagem da família), existiam receitas para realizar o que chamavam de “desvio de gravidez” (STROUHAL, 2007).
Contudo, quando se tratava de um futuro casal da realeza, a aliança poderia ocorrer muitos anos antes da maturação sexual do casal, visando não o amor ou a harmonia entre os casados, mas a conveniente união entre famílias e ordens religiosas.
Sabe-se que era popular o matrimônio incestuoso tanto dentro da realeza, como entre as camadas mais populares, no entanto, tal prática tornou-se de fato obrigatória durante o Período Ptolomaico, quando a nobreza tentou agregar para si uma identidade semelhante aos dos deuses (STROUHAL, 2007). Porém, não necessariamente um casal que chamam um ao outro de “irmã (o)” de fato tinham uma ligação sanguínea. Em verdade tal termo buscava explanar algo carinhoso, indicando um forte vínculo com quem se amava (STROUHAL, 2007).
A festa para comemorar a nova vida juntos usualmente consistia em um banquete que reunia o casal com seus familiares e amigos. Um acordo social — escrito e assinado na presença de testemunhas — definia quais eram os bens da mulher e do homem antes do casamento, em uma eventual separação era necessária a correta divisão dos bens segundo este acordo. Contudo, no caso de grandes discórdias, eram feitas seções para decidir o que cada um tinha por direito (STROUHAL, 2007).
Como o sexo era permitido antes do matrimonio, naturalmente é de considerar que a virgindade não era um tabu ou algo necessário. O que se esperava é que a esposa não estivesse grávida de outro homem. Embora uma criança com uma ligação sanguínea com a família fosse desejada, a adoção foi um ato cultural e existem registros de testamentos tanto de mulheres como de homens que deixaram seus bens para filhos adotivos (STROUHAL, 2007).
O adultério era condenável para ambos os lados. Caso o casal julgado fosse condenado, ambos eram chicoteados publicamente ou marcados e existiram penas que iam desde o exílio para a Núbia até cortar o nariz ou as orelhas (STROUHAL, 2007). Se levarmos a sério os textos ficcionais como o Papiro Westcar, podemos crer que a pena de morte para estes casos no Antigo Reino era aceitável. Nele, um sacerdote traído pede auxílio ao Faraó, que por sua vez condena o amante da esposa a ser devorado por um crocodilo feito de cera (que se transforma em um animal de verdade) e a mulher a ser queimada e tuas cinzas jogadas no Nilo (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007). Acontecimento semelhante é contato na história dos irmãos Bata e Anúbis: este último, ao descobrir que a esposa assediava o irmão, pede o assassinato da mesma e que o seu corpo seja jogado aos cães (STROUHAL, 2007). Contudo, ao contrário desses textos, nem todas as traições terminavam de forma dramática, alguns documentos citam o divórcio por tais motivos sem incidentes (STROUHAL, 2007; LORTON, 1977; GALPAZ-FELLER, 2004; TOIVARI-VIITALA, 2001 apud TOIVARI-VIITALA, 2013).
Entretanto, a violência contra o gênero feminino também foi registrada em textos não fictícios, como atesta um documento onde a mulher denuncia o crime:
“Meu esposo me bate com um látego, e quebrou meu braço como se fosse um junco. Meu primogênito me deu um pontapé, e esta manhã não pude levantar-me da cama” (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007, pág 111).
Outro motivo para o divórcio poderia ser a não satisfação sexual: a esposa poderia acusar o marido de não satisfazê-la sexualmente e assim dar entrada na separação (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007). Procurando evitar isto alguns homens acionavam médicos que cuidavam do seu problema, definido como “doença de homem” (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007).
União homossexual:
Alguns pesquisadores têm se empenhado, desde o início da Egiptologia, em negar a existência da prática homossexual no Egito Antigo, a exemplo de Frank Fortis que na década de 1950 tendia a negar veemente o enlace sexual entre pessoas do mesmo gênero, ao mesmo tempo que afirmava que tal prática era tolerada. Além deste discurso contraditório ele possuía uma visão preconceituosa, afirmando que as mulheres e homens egípcios eram miseráveis sexualmente e limitados culturalmente (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007).
Alguns pesquisadores têm se empenhado, desde o início da Egiptologia, em negar a existência da prática homossexual no Egito Antigo, a exemplo de Frank Fortis que na década de 1950 tendia a negar veemente o enlace sexual entre pessoas do mesmo gênero, ao mesmo tempo que afirmava que tal prática era tolerada. Além deste discurso contraditório ele possuía uma visão preconceituosa, afirmando que as mulheres e homens egípcios eram miseráveis sexualmente e limitados culturalmente (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007).
Mas, a despeito da negativa, existem textos egípcios que apresentam a homossexualidade tais como o do Papiro Prisse (Médio Reino), em posse da Biblioteca Nacional de Paris e o Papiro 10509, sob a custódia do Museu Britânico (EL-QHAMID; TOLEDANO, 2007).
Referências:
COELHO, Liliane Cristina; BALTHAZAR, Gregory da Silva. As múltiplas sensibilidades do feminino na literatura egípcia do Reino Novo (c. 1550-1070 a.c.). In: CANDIDO, Maria Regina [org.] Mulheres na Antiguidade: Novas Perspectivas e Abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora-DG ltda, 2012.
EL-QHAMID; TOLEDANO, Joseph. Erotismo e sexualidade no Antigo Egito (Tradução de Suzel Santos, Carlos Nougué). Barcelona: Folio, 2007.
STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007.
TOIVARI-VIITALA, J. “Marriage and Divorce”. UCLA Encyclopedia of Egyptology, 1-17. Retirado de https://escholarship.org/uc/item/68f6w5gw (2013)
EL-QHAMID; TOLEDANO, Joseph. Erotismo e sexualidade no Antigo Egito (Tradução de Suzel Santos, Carlos Nougué). Barcelona: Folio, 2007.
STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007.
TOIVARI-VIITALA, J. “Marriage and Divorce”. UCLA Encyclopedia of Egyptology, 1-17. Retirado de https://escholarship.org/uc/item/68f6w5gw (2013)
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